E acrescenta: "Não exigimos uma 'justiça religiosa', como ainda acontece noutros horizontes culturais da humanidade; mas acreditamos que a fé dos crentes, em diálogo sincero com todos, pode contribuir para o burilar contínuo de uma verdadeira cultura da justiça, que deve ser aberta à transcendência do homem e às exigências inultrapassáveis da dignidade humana".
Pode e deve. Mas como? Para já, aproveitando bem as ocasiões. O debate sobre a "despenalização do aborto" foi acompanhado de uma sondagem de opinião elaborada pela Universidade Católica.
É possível e normal que católicos não tenham todos a mesma posição perante o problema. Mas para que possam dar um contributo que interpele a consciência dos portugueses seria importante que os próprios bispos fizessem desse debate uma "questão disputada" no interior das próprias comunidades católicas.
Os sintomas de grandes viragens culturais e de mudanças na sensibilidade religiosa exigem a coragem de não deixar passar a hora de intervir, sem ir na onda e sem recorrer apenas às respostas congeladas e prontas para todas as situações. A interpretação dos "sinais dos tempos" é a arte de saber compreender o que se está a passar e o que se anuncia.
Nada, porém, se faz automaticamente. O estado da cultura da justiça e da verdade, no seio das comunidades cristãs, também se avalia pela investigação e pelos debates que elas promovem para estarem prontas a dar razão da esperança que as move na sociedade.
O diálogo entre católicos de várias tendências exige o enfrentamento de "questões disputadas". Os cristãos não estão todos no mesmo partido e nenhum partido se pode arvorar em herdeiro e representante da fé cristã. E nunca se ouviu no Movimento Ecuménico das Igrejas o "slogan": "Os cristãos unidos jamais serão vencidos."
Quando falo de "questões disputadas" tenho em mente as práticas lúcidas e corajosas de Tomás de Aquino, discípulo Alberto Magno, que o levaram, em 1277, à condenação, por E. Tempier, bispo de Paris, servido por uma comissão de dezasseis teólogos que o ajudaram na operação de barrar o caminho à emancipação da filosofia e às suas infiltrações no tecido teológico. Segundo o medievalista Alain de Libera, a arqueologia das ambiguidades da encíclica "Razão e Fé" de João Paulo II deve ser procurada nesse conflito (1).
Seja como for, fala-se hoje de um "novo paradigma" teológico. Temos dele mais descrições do que práticas efectivas. Verifica-se sobretudo um grande acanhamento diante das posições do cardeal Ratzinger. Em nome da "Igreja de comunhão", evitam-se as "questões disputadas" destinadas a provocar a investigação da verdade presa na injustiça do mundo onde cresce o fosso entre ricos e pobres.
S. Tomás de Aquino, um mendicante, conhecia muito bem e descreveu as múltiplas artes e géneros literários que vestem a Revelação divina ao longo dos tempos e o seu acolhimento na inteligência humana pela graça da fé, privilegiando sempre as formas simbólicas, parabólicas, narrativas e imperativas. Baseou-se no Novo Testamento para justificar o seu recurso à teologia argumentativa indispensável para testemunhar a verdade da fé cristã no novo contexto cultural.
Na exposição da Sagrada Escritura, que muito cultivou, sabia que estavam consagrados quatro sentidos dos textos: o sentido histórico, o sentido moral, o sentido alegórico e o sentido místico (anagógico). Mas Tomás de Aquino destacava sempre o sentido literal para que a maravilhosa teologia simbólica não fosse utilizada para encobrir uma floresta de enganos.
Para quem desejar seguir o percurso fascinante deste dominicano apaixonado da verdade de Deus e da verdade do mundo - que se despediu, aos 49 anos, do interior da sua noite mística, dizendo "depois do que vi, é só palha o que escrevi" - recomendo a obra de maior rigor histórico (2).
Notas
(1) Cf. Alain de Libera, "Raison et Foi. Archéologie d'une crise d'Albert le Grand à Jean-Paul II", Paris, Seuil, 2003.
(2) Cf. Jean Pierre Torrel, "Iniciação a Santo Tomás de Aquino. Pessoa e obra", Ed. Loyola, São Paulo 1999.
"Nas escolas, nos colégios e nos liceus públicos são proibidos o porte de sinais ou modos de vestir pelos quais os alunos manifestam ostensivamente uma pertença religiosa."
Para Jacques Chirac, está em jogo o princípio da laicidade, um dos pilares da República. Não se trata de proibir sinais de pertença religiosa na vida de todos os dias, mas de proteger a escola pública dos perigos do comunitarismo. Segundo a retórica do Presidente francês, a escola deve continuar um santuário, um lugar privilegiado da transmissão dos princípios e dos valores da República. Estes implicam a igualdade de oportunidades, a estrita igualdade entre mulheres e homens, o respeito pelo princípio de mestiçagem, a luta contra as discriminações e um empenhamento resoluto na integração: todos com os mesmos direitos e os mesmos deveres. Inebriou-se com aquilo que devia ser uma augusta banalidade: "Todas as crianças de França, seja qual for a sua história, a sua origem, a sua religião e as suas crenças são filhos e filhas da nação."
2. Mas qual é o princípio da laicidade, de que fala J. Chirac? Este termo entrou no discurso político em 1871, mas não conseguiu fazer parte do vocabulário da célebre e controversa "Lei de separação da Igreja e do Estado" de 1905. Redigida num contexto de anticlericalismo violento, apresentou-se com um objectivo de pacificação. Já foi modificada nove vezes.
O próprio regime de separação é muito curioso: o que é uma separação na qual o Estado garante o exercício livre do culto, reserva para si a propriedade dos edifícios religiosos, mas coloca-os gratuitamente à disposição da Igreja? Não há separação nem de corpos nem de bens, como se o casal tivesse querido divorciar-se guardando o mesmo leito... "Estão condenados a entender-se", conclui o historiador e sociólogo Emile Poulat.
Sem nunca ter sido definido oficialmente o que se entende por laicidade, esta surge pela primeira vez em 1946, e só como adjectivo, na declaração: "A França é uma República laica."
Com o tempo, evoluiu de uma laicidade de combate para uma laicidade aberta, plural, sempre em renovação. O Estado é laico, mas a sociedade francesa é cada vez mais pluralista, multicultural e multirreligiosa.
3. O barulho, apesar de tudo, está centrado no "véu islâmico", que historicamente nada tinha de religioso. Era um uso das mulheres muito anterior a Maomé. No cristianismo já tinha acontecido algo parecido. As mulheres perceberam que a adesão a Cristo as tornava livres e as situava em igualdade com os homens. Era, aliás, a posição enfática de S. Paulo. Mas por causa dos distúrbios provocados pela ruptura com os costumes locais, ele mandou que as mulheres nas assembleias litúrgicas estivessem caladas e de cabeça coberta. São conhecidas as consequências perversas desta norma marcada por circunstâncias de tempo e lugar. Ainda nos anos 50 do séc. XX, o episcopado português andou preocupado com o vestuário das mulheres!
O debate sobre o "véu" - seja ele considerado um sinal religioso, um simples costume, uma marca identitária, uma forma de protesto ou ainda um índice de submissão da mulher, um meio de controlo sexual e matrimonial da rapariga - serve para ocultar o essencial.
4. O conhecimento historiador René Rémond, que fez parte da comissão oficial presidida por Bernard Stasi, manifestou-se indignado, no jornal "Le Monde", com a instrumentalização reducionista que o Governo fez do trabalho por ela realizado.
A resposta política actual tem um carácter absurdo e ridículo. Mantém os cidadãos na ilusão de que basta votar dois artigos da lei e fica resolvido o problema da integração. Ora, o alarido em torno do "véu" esconde a questão central: qual a capacidade da França para integrar as populações novas e fazer aceitar a lei comum por estes novos franceses? Conclusão de R. Rémond, seguido por A. Touraine: "Deixamo-nos crispar por um problema ultraminoritário, quando o verdadeiro desafio é o da integração social e profissional."
Esta é um questão de toda a Europa - e não só! - revestindo particularidades significativas segundo os países. Os governos, o patronato, as escolas, as polícias, os meios de comunicação e a população no seu conjunto deviam saber que não há nenhum interesse em viver sobre arsenais de explosivos, sobre questões de integração mal resolvidas.
É evidente que os trabalhos pela legalização dos emigrantes e de combate às redes do tráfico de seres humanos são essenciais para facilitar a sua desactivação. Mas a pergunta anterior a todas é outra: que esforços fazemos - a nível público e privado - para conhecer as configurações culturais dos povos das pessoas que procuram trabalho em Portugal? Que grau de conhecimento da língua portuguesa e da nossa cultura lhes proporcionamos e exigimos?
Um exemplo: quantas horas foram ocupadas pelas televisões e pelas rádios com a morte de Fehér? Que ficaram os portugueses a saber dos diversos aspectos da história e da vida do povo húngaro?
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