Foi publicada há dias uma síntese do estudo sobre "Identidades religiosas em Portugal: identidades, valores e práticas - 2011", realizado pela Universidade Católica.
A primeira nota a realçar é o nível científico do estudo, destacado por todos os peritos na matéria. Deve--se também sublinhar o patrocínio da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) e a transparência da publicação, apesar de os resultados não serem favoráveis à Igreja.
No estudo, mostra-se que o número dos católicos em Portugal caiu, entre 1999 e 2011, de 86,9% (1999) para 79,5% (2011). O número dos católicos diminuiu, mas aumentou a percentagem de pessoas com outra religião: de 2,7% em 1999 para 5,7% em 2011, sendo a posição dos protestantes e dos evangélicos a que mais cresceu: de 0,3% para 2,8%. Aumentou também o número dos sem religião: de 8,2% para 14,2% (neste universo dos que não têm religião, todas as categorias apresentam um acréscimo percentual: indiferentes, de 1,7% para 3,2; agnósticos, de 1,7% para 2,2%; ateus, de 2,7% para 4,1%).
Como conclui o relatório assinado por Alfredo Teixeira, do Centro de Estudos de Religiões e Culturas, da UC, referindo-se à reconfiguração da pertença religiosa em Portugal, "pode observar-se um decréscimo relativo da população que se declara católica e um incremento da percentagem relativa às outras posições de pertença religiosa, com um particular destaque para o universo protestante (incluindo os evangélicos)". "Globalmente, o crescimento relativo dos sem religião em relação ao número de católicos é mais pronunciado do que o crescimento do número dos pertencentes a outras denominações religiosas. Isto é particularmente relevante no caso da categoria 'crentes sem religião'" (4,6%). O conjunto constituído pelos não crentes concentra-se na região de Lisboa e Vale do Tejo.
Como escreveu Vasco Pulido Valente, a diminuição percentual dos católicos "não se pode tratar como uma catástrofe" (já a sua afirmação de que "o católico típico português, como se esperaria, é hoje uma mulher da província e de meia-idade, longe de qualquer cidade importante e sem educação escolar (ou sem quase educação escolar)" é uma caricatura apressada). De qualquer modo, dizer, como fez o porta-voz da CEP, que "o que é essencial é a qualidade e não a quantidade" pode ser uma resposta preguiçosa.
As explicações para a situação são múltiplas, e a Igreja não é a única responsável. Assim, não se pode esquecer a secularização da consciência nem o materialismo e o hedonismo da nossa cultura bem como a abertura maior do mercado religioso, também por causa da imigração. O sentido de mais autonomia, maior prosperidade e a escolarização poderão contribuir para a indiferença religiosa, o ateísmo e a crença sem pertença. Mas, por parte da Igreja, não poderá ignorar-se a influência negativa dos escândalos da pedofilia, a ostentação do Vaticano, a hierarquização, que não favorece a real participação dos fiéis e nomeadamente das mulheres, a quebra no dinamismo pastoral do clero, a inadaptação aos novos tempos, concretamente no domínio sexual, que conduz a fracturas face à doutrina oficial.
As comunidades católicas vivas assentam em três pilares. O primeiro tem que ver com uma fé viva e esclarecida, capaz de dar razões. Neste domínio, penso que a Universidade Católica poderia cumprir melhor as suas responsabilidades. O outro diz respeito à prática do amor. Não há dúvida de que os católicos tanto a nível institucional como a nível individual e familiar têm sido exemplares no atendimento às carências dos mais desfavorecidos. Mas não basta: não deixa de impressionar que, se, quanto ao sentido da vida e à moral humanitária ou aos valores altruístas, a influência da religião se manifesta forte, é débil quanto ao sentido cívico-político, o que leva à pergunta: são só os 20% não católicos os responsáveis pela actual crise dramática do País? O terceiro pilar tem que ver com as celebrações: aqui, impõe-se um enorme investimento a fazer tanto nas homilias como na música, na sua dignidade e beleza.
Para lá da síntese que apresentei, acima, do estudo sobre "Identidades Religiosas em Portugal: Representações, Valores e Práticas - 2011", da Universidade Católica, há outros dados significativos sobre os quais é importante reflectir.
Apesar da descida de 7,4% nos últimos 12 anos, 79,5% da população continua a afirmar-se católica em Portugal (quatro em cada cinco portugueses). Quanto à prática religiosa, 31,7% dizem que vão à missa pelo menos uma vez por semana. Somando os 14% que dizem ir pelo menos uma ou duas vezes por mês, o total perfaz 45,7%. Esta percentagem, por razões que a sociologia explica, deve ser exagerada. Seja como for, quase metade dos católicos considera-se não praticante (43,9%).
Quanto às práticas orantes, a sondagem mostra que, juntando os que dizem rezar todos os dias e os que rezam algumas vezes na semana, obtemos o total de 59,7%.
No domínio referente ao lugar das crenças religiosas no sistema de valores, sobressaem as proposições que afirmam a religião enquanto proporcionando sentido para a vida (36,3%), dando capacidade de perdoar (28,9%), aceitação da dor e da morte (18,7%), desejo de ser melhor (24,5%), valor à família (27,0%); quanto à moral humanitária, 32,7% dizem que a religião contribui para o desejo de ajudar os outros, e 27,9% para preocupar-se com a pobreza, a guerra e a fome. Note-se ainda que 46,5% e 29,0%, respectivamente, concordam total ou parcialmente com a proposição "sem a Igreja católica, em Portugal, muitos (idosos, doentes) ficariam mais sós" e 38,7% e 26,9%, respectivamente, concordam total ou parcialmente com a proposição "sem a Igreja católica, em Portugal, muitos não encontrariam um sentido para a vida".
Já quanto às proposições relativas ao contributo da religião para a dimensão cívico-política as percentagens são tremendamente baixas: "competência no trabalho": 9,6%; "honestidade no pagamento de impostos": 7,9%; "participação na vida cívica e política": 6,7%.
Aqui, é preciso parar e reflectir. Que se passa, se Jesus foi morto como blasfemo religioso e subversivo social e político? Afinal, o que é ser praticante, se Jesus anunciou o Reino de Deus, que começa já neste mundo? Que significa praticar liturgicamente, se não há consequências na praxis social e política?
É fundamental distinguir entre ética, direito, política e religião. Mas não se percebe por que é que a religião não há-de influenciar e motivar positivamente os crentes para uma praxis humanista e competente nestes domínios.
Neste contexto, há muito que a filósofa Adela Cortina chama a atenção concretamente para a relação entre ética e religião, apelando para a distinção entre ética de mínimos e ética de máximos.
Numa sociedade pluralista, impõe-se, no quadro de uma argumentação racional, uma ética de mínimos, que consiste em dar a cada um o que lhe corresponde, que é a exigência da justiça, do mínimo decente humano.
Isto hoje concretiza-se na obrigação por parte da sociedade de "garantir a cada um o exercício dos direitos: 1) da primeira geração, isto é, das chamadas 'liberdades de' (liberdade de consciência, de expressão, de imprensa, de associação, de participação no poder político e de iniciativa económica; 2) dos direitos da segunda geração, agrupados sob a expressão 'liberdades em relação a' ou 'libertação' (libertação da fome, da necessidade, da ignorância, da doença, que só pode conseguir-se satisfazendo o direito à educação, a um meio de vida digno, a uma certa segurança em casos de doença, desemprego ou velhice); 3) dos direitos da terceira geração, que exigem, ainda mais do que os restantes, a solidariedade internacional (direito à paz e a um meio ambiente sadio)".
Com este mínimo conjuga-se uma ética de máximos, que tem a ver com a felicidade, no quadro de projectos livres, religiosos, agnósticos ou ateus. Aí, estamos já no domínio do razoável, da narrativa, do dom e da graça.
Autor: Anselmo Borges
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