PÚBLICO - Sabado, 2 de Março de 1996 - Sociedade
O pecado original nunca existiu
Teresa Firmino
Um mito não é apenas uma metáfora e há mitos mais rigorosos que outros. Uma tese que acaba de ser publicada em Portugal, põe em causa quase tudo o que se aprende no catecismo sobre o paraíso, Adão e Eva e o pecado original.
Sabe que Adão e Eva não viveram no Paraíso terrestre? Sabe que no texto original do Antigo Testamento nem sequer se encontra a palavra Paraíso? Mas há mais: sabe que Adão e Eva, quando comeram o fruto proibido, não cometeram o pecado original, carregado das habituais conotações sexuais? O pecado original, simplesmente, não existiu. É desta forma que o padre Armindo dos Santos Vaz, professor na Universidade Católica Portuguesa, interpretou a narração da origem do homem no Antigo Testamento numa conferência para "Repensar as origens - diálogo entre a ciência e teologia", que terminou ontem em Lisboa.
De facto, a tese de doutoramento de Armindo Vaz - defendida na Universidade Gregoriana, em Roma, e considerada uma interpretação inovadora da narrativa da criação do homem - defende que essa parte da Bíblia é um mito. E, como mito, é uma invenção, uma metáfora explicativa das realidades existentes no tempo dos autores hebraicos da Bíblia, alguns dos quais mitógrafos.
O padre Armindo Vaz interpretou os capítulos dois e três (escritos entre os séculos IX e VI A.C.) à luz dos mitos de origem da Mesopotâmia (do princípio do terceiro milénio até ao século IV A.C.). Tanto este mito bíblico da criação, como os mitos mesopotâmicos, a certa altura contemporâneos, pretendiam interpretar as realidades sociais, culturais, religiosas e históricas da vida humana arranjando-lhes então uma origem inventada. E assim, Armindo Vaz interpreta uma parte da Bíblia recorrendo a textos extra-bíblicos e ao contexto daquela época.
A leitura tradicional presente no catecismo diz que Adão e Eva, já humanos e num tempo histórico, viveram em perfeita harmonia num lugar divino - o Paraíso terrestre ou Éden. Até que, ao comer o fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, cometeram o pecado original, sendo expulsos do Paraíso e tendo transmitido esse pecado às gerações futuras.
Ora, para o padre Armindo Vaz, eles não viveram no Paraíso das delícias terrestres num tempo já histórico nem estavam ainda completamente criados por Deus. Neste mito, viveram sim no "pomar de uma várzea" ou "gan-éden", na expressão hebraica. "A concepção de Paraíso das delícias terrestres não está no texto original em hebraico nem na tradução mais antiga do Antigo Testamento, a grega, nem sequer na latina".
De facto, os tradutores da Bíblia para o grego traduziram "éden" como "parádeisos" - um terreno circundado por uma sebe destinado ao cultivo de legumes e árvores frutíferas. E depois o "parádeisos" foi traduzido para o latim como "paradisus". Em ambos os casos, o sentido continua a ser o de um pomar ou jardim plantado numa várzea fértil.
De onde surgiu então a confusão entre Éden (ou "parádeisos" e o "paradisus") e o Paraíso de delícias terrestres? De escritos judaicos que falavam de um Paraíso celeste. Nessa concepção, assumida pelo Novo Testamento, o Paraíso é um local espiritual (não terrestre) para onde irão os justos depois da morte. E foi assim, diz Armindo Vaz, que "a interpretação dos textos bíblicos fundiu e confundiu a concepção do Paraíso de delícias com o local de trabalho normal em que o homem primordial foi colocado por Deus".
"Não houve queda"
Ao pôr o homem no pomar de uma várzea, um local fértil e fácil de trabalhar, o mitógrafo preparava a explicação para a realidade do trabalho penoso dos solos aráveis - a realidade que afinal ele conhecia e pretendia explicar. Para isso, Adão e Eva teriam de ser expulsos do "gan-éden", por terem comido o fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. Interpretando essa transgressão com a ajuda dos mitos de origem mesopotâmicos, Armindo Vaz defende que a transgressão do casal primordial tem como função a explicação das penas e das dores da vida humana. "Essa transgressão é mítica, não é histórica. É anterior à história para explicar a história".
Quando cometeram a transgressão, os nossos proto-parentes míticos adquiriram então o conhecimento, a condição humana (a mortalidade, o sofrimento) e a civilização. "Não houve uma queda, mas sim uma evolução no processo de criação do homem em curso. O mitógrafo explica assim o conhecimento, adquirido de forma abusiva".
Quando Adão e Eva adquiriram conhecimento, cobriram-se com folhas de figueira: "Enquanto antes estavam nus e não tinham vergonha - ainda não estavam civilizados -, agora já sentem o pudor das pessoas civilizadas e procuram cobrir-se". Mas, o narrador do mito bíblico não conhecia pessoas vestidas com tangas, ainda que de folhas de figueira, mas sim túnicas. "Era essa a realidade que que precisava de explicar e, por isso, põe Deus a fazer túnicas de peles e a vestir o homem e a mulher. Dessa forma, explica a civilização representada simbolicamente no vestuário. É uma linda maneira de ver a civilização à luz de Deus".
De acordo com esta interpretação, Armindo Vaz acha que o narrador procurou "desresponsabilizar Deus de estar implicado no mal da vida humana, mas também desculpabiliza o ser humano". Por um lado, foi o ser humano a transgredir, por outro, se queria atingir a civilização tinha de transgredir. "Não havia hipótese. O mito é subtil, lindíssimo." Daqui emerge então uma interpretação positiva, pois "os mitos das origens não são tragédias".
Sexualidade sem culpa
Do que foi dito resultam importantes implicações teológicas. A primeira de todas: "Não houve pecado original. O texto não fala dele; fala de uma transgressão funcional ao serviço da explicação das durezas e contrariedades da vida humana. Por isso é que o narrador pôs Deus a proibir comer da Árvore do Conhecimento". E prossegue: "O texto não usa nenhum dos muitos termos que o mitógrafo conhecia para dizer pecado moral. Ele não queria falar de pecado".
Como é que o padre Armindo Vaz chega àquela conclusão? Primeiro, argumenta que o homem e a mulher não tinham conhecimento do bem e do mal, antes de comerem o fruto, portanto não tinham capacidade para cometerem um acto moral. Depois, encontravam-se ainda em processo de criação: "Ainda lhes faltavam muitos atributos para serem totalmente humanos, que vão ser criados com a sanção. O castigo não é moral, logo a transgressão também não é moral". E portanto, não houve pecado original.
Outra ideia errónea deste mito, devido ao facto de a Bíblia ter sido lida em circuito fechado, é a associação do acto de comer da Árvore do Conhecimento às relações sexuais: "O texto não diz nada disso. Significa apenas que Adão e Eva adquiriram conhecimento". Assim esta interpretação "descarrega a dimensão sexual humana de culpabilidade", pois na visão tradicional o acto sexual é impuro como se tivesse sido a causa do pecado original e das penas humanas. "A interpretação fortemente sexual deste texto, especialmente desde Santo Agostinho, contribuiu para a conotação negativa da sexualidade humana. E é um pouco por isso que até há pouco tempo a moral cristã carregava de tintas culpabilizantes as relações sexuais". Para Armindo Vaz, elas devem assim ser vistas como "naturais à condição humana".
Aqui e no resto da interpretação sublinha-se o lado positivo do texto bíblico: "A explicação tradicional afunda o leitor no pessimismo, na tragédia e no fatalismo: "Se calhar não seríamos mortais e ainda estaríamos a viver no Paraíso"".
Vai a Igreja Católica aceitar esta nova leitura? "Esta interpretação é irreversível", crê Armindo Vaz. Pelo menos, não lhe aconteceu o mesmo que ao padre alemão Herbert Haag. Defensor da inexistência de pecado original, Haag teve contra si um processo do Vaticano durante dez anos por "não ter demonstrado as suas afirmações".
No meio disto tudo, onde fica o evolucionismo, a teoria da origem da vida e do homem a partir de outros primatas? Para Armindo Vaz uma coisa não exclui a outra: "Este texto bíblico não implica com as conclusões da ciência. Ele está no plano da fé". De facto, hoje a Igreja já aceita a evolução da vida e do homem como explica a ciência, embora defenda alguma intervenção de Deus.
Essa foi, de resto, a posição defendida na mesma reunião por Luís Archer, sacerdote jesuíta e geneticista da Universidade Nova de Lisboa, tentando a difícil conciliação entre ciência e teologia. Depois de dizer como a ciência pensa terem surgido as primeira moléculas capazes de reprodução, Archer disse acreditar numa realidade existencial imanente à matéria viva e inanimada. Essa realidade, para Archer, é a acção criadora com a qual Deus se identifica: "Deus está dentro da matéria e é a força que a impulsiona para evoluir".
Foi o acaso ou foi Deus que esteve na origem do mundo, da vida e do homem? A ciência não tem sentido uma grande necessidade de responder a essa pergunta. E a religião parece ter uma relação cada vez mais pacificada com a questão.
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